terça-feira, 6 de outubro de 2009

- só porque me lembro deste texto vezes sem conta.

O Sorriso - José Saramago
Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos.

O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.

Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.

O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.

terça-feira, 14 de julho de 2009

era uma vez.

Devorado pelo céu negro da noite, ele acendia um cigarro enquanto se deitava sobre a areia fria.
A melodia do mar deixava vir à tona memórias doces - quase tão doces como uma combinação abusiva de chocolates, álcool e prazer. Afinal, tudo girava em torno da mulher da sua vida: o cocktail perfeito com as doses correctas, o sabor ideal, a beleza mais incrível, a alma mais bonita.
As ondas do mar, sarcásticas como nunca, assistiam aquele episódio aparentemente tirado de uma cena errada de um filme pouco profissional.
O mundo não parecia passar ali, nem o mundo, nem o tempo. Nem o sangue lhe escorria pelas veias.
A face bem desenhada do rapaz era agora nada mais do que um vulto absolutamente negro, absolutamente triste, absolutamente perdido. Desejava mais do que qualquer uma futilidade habitualmente desejada, ser a resolução para o problema do seu amor, da princesa dos seus castelos, da rainha dos seus sonhos, da sereia dos seus imensos mares.
Permanecia ali, desligado do relógio, desligado do seu corpo perfeitamente bonito. Só sabia dela, dos seus passos, até dos seus gestos ocasionais. Lembrava-a lindíssima, inalcançável, perfeita. Surgiam vagas memórias: era bonita quando acordava, quando adormecia. Era bonita todos os dias. Era bonita quando ria, era bonita quando chorava de riso. Era bonita quando gritava, até triste era bonita. Era bonita de vestido, mas simplesmente linda com uma t-shirt dele, enorme, com o cabelo despenteado, descalça a vaguear pela casa impondo a sua beleza em todos os cantos, em todos os pormenores pouco relevantes tornando-os extremamente especiais.
Fumava mais um cigarro, já quase sem força para elevar a mão à boca. Podiam-lhe arrancar o Mundo, mas tirarem-lhe a terna imagem de a ver adormecer no seu peito depois de uma noite de amor era matá-lo. E morria, de facto. Estava a morrer lenta e dolorosamente.
Faltava-lhe a essência perfumada da sua pele macia, a simplicidade mágica do seu sorriso mais branco do que a neve.
Faltava-lhe o olhar terno, a palavra amiga, o jeito acriançado. O cabelo no ar de todas as manhãs, os dias passados na cama a comer pipocas e a ver desenhos animados.
Faltava-lhe o fragmento mais feliz de si e agora, a areia gelava-lhe a figura, como que para completar a alma já desfeita em cacos gelados.
E depois, quando já não havia mais lágrimas para chorar nem cigarros para consumir furiosamente, sentou-se sem se importar minimamente com a quantidade de areia na sua camisola e olhou fixamente o mar - tal como a sua deusa fazia, tantas e tantas vezes. Olhou e sentiu o coração apertar muito… Quando voltou a olhar para o horizonte, estavam imensas palavras soltas escritas na água calma. Palavras que os uniam, mesmo que não tivessem qualquer sentido quando juntas.
E ele, cerrou os punhos, pegou nas sapatilhas e pôs-se a caminho. Caminhou para a felicidade. Correu em direcção à correcção de todos os erros cometidos anteriormente.
Jurou a si mesmo, deixando o poderoso mar como testemunha que nunca, nunca se voltaria a sujeitar a tamanha dor. Nunca mais, nem por um segundo que fosse se voltaria a imaginar longe dela, longe da felicidade, longe da harmonia, longe do seu jeito mimado, dos seus gestos estranhos, simples e demasiado bonitos para interpretar.
Do outro lado da praia, estava ela. Senhora de si, descalça. Olhava o horizonte com uma intensidade inexplicável e sentia o mesmo aperto que ele.
Era amor. Ou apenas paixão. Fosse o que fosse, era bonito.
Filipa silva.



You Found Me (Acoustic Version) - The Fray

sexta-feira, 13 de março de 2009

olhar de promessas fáceis

Hoje quero muito ficar só. Ou apenas ficar muito só. Talvez hoje só queira ficar. Ficar não sei bem onde, nem com quem ou 'sem quem'. Sei que quero sentar-me num chão duro e ver à minha frente a linha do horizonte.Esquecer os olhares de promessas fáceis que iludem e desiludem com uma pressa enigmática; as palavras baratas que enchem o ar poluído de mais poluição ainda; os gestos mentirosos que se envolvem em ciclos muito mais do que viciosos.
Abstraída, vou envolver-me nessa realidade falsa e aproveitar desequilibradamente os escassos segundos da sua duração - um, dois ... nem tanto.
E assim, ciclicamente.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

texto autobiográfico - uma memória.

Sob mil sóis escaldantes vivia inundada de alegria e inocência um amor adulto, muito mais do que qualquer outro. Mais do que amor, era um fascínio apaixonante que nunca ousei partilhar.
Via-o como ninguém e sentia que todos os centímetros da sua imensidão me pertenciam fielmente. Conhecia de cor o seu cheiro fresco e suave, o seu toque frio mas carinhoso.
Foram muitas as vezes em que me sentava em areia humedecida e olhava com vontade de ver mais, de alcançá-lo e possuí-lo de forma egoísta.
E depois, mais tarde e já quase sozinha, sentia a brisa leve levantar-me os cabelos e imaginava que eram as suas mãos a acariciar-me com um amor de certa forma retribuído. Haviam dias em que, pensava eu, era melhor não me aproximar pois a sua fúria era irreversível - nunca me lembrei, porém, que poderia tentar acalmá-lo
Ninguém se atrevera a entender o meu secreto fascínio, mas pelo menos não o julgavam - talvez porque a minha figura pequenina de criança lhes transmitia uma alma sensível.
Amava aquele mar imenso e ainda não tinha a capacidade de o condenar por nao ser, nem tão pouco, a única. Continuei a venerá-lo e a querer senti-lo meu.
Contudo, a magia tem sempre um fim, e sem avisos prévios ele foi, para não mais querer voltar a ser o mesmo, nem sequer meu.
Hoje, é significado de tranquilidade, paz, harmonia, reflexão e muito mais. Mas o fascínio perdeu-se entre a areia e as rochas, entre os contratempos do próprio tempo. Como tudo.

Filipa Silva.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

mil vezes mais

Sob mil sóis escaldantes, brisas suaves e ventanias irreversíveis, debaixo do preto da noite, da magia da lua e em frente ao mar sedutor.
Em mil ares diferentes, odores opostos e toques contrastantes, em mil sonhos calados, falados, cantados; em mil páginas escritas, rasgadas, queimadas, riscadas.
Em mil céus diferentes: nuvens em forma de coração, de monstro, de rio e flor. Por mil caminhos diferentes, estradas velhas, novas, paralelos e até areia e terra, mil destinos sonhados , mil horizontes programados, mil objectivos traçados, e mil sonhos por construir/destruir.
Sob mil chuvas torrenciais e flocos de neve, debaixo de mil estrelas diferentes e com mil cores marcantes faço o desenho de uma história, que não cabe em mil e uma telas.
Vivo, sob e sobre mil sensações diferentes e amo de mil maneiras minhas. E vivo. Em mil dias aprendo a viver, noutros a sobreviver. Mas vivo com mil vontades de ser mais.
E amo, amo muito mais do mil vezes.
Filipa Silva

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

2008. 2008 foi mais um ano, diferente e igual aos muitos outros. Com cores e sorrisos, a preto e branco e com lágrimas.
Fechei gavetas e abri baús, escondi gigantes e constantemente cruzei-me com minúsculos soldadinhos do coração.
Compliquei o mais simples e tentei simplificar as maiores complexidades da vida. Li, revi-me naquilo que li. Escrevi e tornei-me personagem da minha própria vida feita em papel. Acrescentei personagens,mas o mais importante foram as que já pertenciam à história:a umas, dei valor, a outras nem tanto. Umas com mais impacto,presença ,outras que apesar de uma significativa distância, permaneceram importantes e não menos especiais.
Sei que tive e terei sempre uma dificuldade estranha em permitir que outras bonecas de pano ou outros guerreiros de chumbo saltem para dentro do meu livro. Não, não é egoísmo, é protecção.
Sendo eu princesa e por vezes apenas figurante, aceitei os papeis e fui aquilo que tive que ser ,fui eu.
Muito mais do que uma personagem cheia de hipérboles ou até eufemismos, não quis metáforas nem muito menos comparações, fui eu, conforme pude, fui mais eu do que qualquer princesa de contos de fadas.
Contudo, o mais interessante neste livro de papel reaproveitado e escrito com marcadores de criança, é que não se trata de um conto de fadas de verdade, até porque não há princesas de verdade, nem fadas, muito menos anões - há a vontade de ser, a capacidade de sonhar e a força de assumir que somos capazes de tudo, basta um sorriso ou outro na plateia.
Não podia deixar esta última fase do meu conto pouco correcto, sem passar a negrito a presença de um príncipe, que foi príncipe sempre que o quis ser, mas acabou por abandonar esse papel mais vezes do que as que eu queria e sonhei. É, a verdade é que muitas das páginas deste ano foram escritas em torno dele , mas houve também muitos papéis borratados por gotinhas transparentes salgadas que saltaram dos meus olhos e fizeram o marcador azul desfazer as palavras. Mas foi ele, que esteve mais presente do que ninguém, embora esta presença seja relativa pois senti que estava sozinha mesmo com ele do meu lado. Amei - o com toda a força do Mundo, e disso , orgulho - me.
Foi assim um ano, mais um. Igual e diferente, original e por vezes vulgar. Amo muito as recordações que enchem o meu baú com a data de 2008, como com a de todos os anos anteriores. Quero,de forma simplista e minha, dizer um obrigada ás personagens que tornaram em arte o meu ano. Mais ainda, aos que tornam a minha vida num livro enorme cheio de cor e expressão.
E arte, arte não no sentido técnico, mas metaforizado - acho eu. Arte porque pessoas que me fazem sorrir, até chorar e me permitem ser eu mesma, são arte em mim, no meu corpo mas relevantemente, no meu coração. Aos gigantes que derrotei e aos minúsculos soldadinhos do coração, obrigada por existirem dentro de mim - obrigada por existirem só para mim.
Para 2009, espero do fundo do baú recuperar a capacidade de sonhar e de acreditar.
Filipa Silva - 30 de Dezembro de 2008